quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A boa morte II

Eis, enfim, o pedido básico até ao instante último: querer ouvir alguém que fale, querer falar para alguém que ouça.


Hoje encontrei na revista "Visão" mais uma crónica de Gonçalo M. Tavares. Vou aqui deixá-la porque me parece a segunda parte da crónica dele que aqui deixei há alguns dias.



Sons últimos e água para as árvores

"Como é estúpido fazer planos para uma longa vida quando não se é sequer senhor do dia seguinte."

Senéca

Últimas palavras

Um dilema moderno. O dilema que, por paradoxo, existe nas cidades mais desenvolvidas: sem cuidados paliativos domiciliários, como ter uma boa morte? Como ter uma boa morte em Lisboa, por exemplo? Voltemos à definição.
"Boa morte: 1. Morte tranquila, com o mínimo da dor. 2. morte em que até ao último momento de vida se conserva a dignidade e a identidade. 3. morte em que o moribundo tem os familiares junto dele." ("Agora e na hora da nossa morte", Susana Moreira Marques)
O ponto 1 - "Boa morte: 1. Morte tranquila, com o mínimo de dor." Por norma, este mínimo de dor (pensando por agora só na dor física) é garantido por meios técnicos que habitam um espaço definido - o hospital. Como conjugar, então esta dor mínima com o ponto 2 - manter a identidade? Como é que um doente mantém a sua identidade num quarto de hospital; afastado do seu espaço, dos seus objetos?
Muitas vezes o terrível dilema dos familiares é precisamente este: a) manter o doente no hospital - local que permite, em princípio, que ele viva mais tempo - ou b) tirá-lo dali e levá-lo para sua própria casa para assim poder ter a tal "morte em que o moribundo tem os familiares junto dele"? Mais tempo de vida ou morte mais tranquila, com mais salvaguarda da identidade e da memória afetiva - morte mais individual, personalizada, junto de familiares a quem possa dar o último conselho e de quem possa receber as últimas atenções. Os dois momentos-limite (morte, nascimento) em que o ser humano precisa de outro - de, pelo menos, mais um outro; e, nessas alturas, que terrível estender o braço e não tocar em nada a não ser em coisas metálicas! O último toque de um moribundo, pensemos nele, como tal é decisivo. Qual foi a última coisa em que o moribundo tocou? - eis uma pergunta relevante. Em que matéria, em que material ou: em que pessoa? A primeira pessoa que nos pega quando nascemos e a última em que tocamos, como tal é relevante. E, no segundo caso, pode resultar de uma escolha consciente, clara: quem escolhes para o último toque? Eis uma das decisões mais sérias. O moribundo, além do mais, quer falar e ouvir - como todos os humanos.
Dizer as últimas palavras para uma máquina, contar o último segredo de família a uma sala vazia, escutar ruídos metálicos em vez de frases e respirações - esta é uma das mais terríveis paisagens em 2013, para alguém que está muito próximo da morte.  e, eis enfim, o pedido básico desde que nascemos até ao instante último: querer ouvir alguém que fale, querer falar para alguém que ouça.


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