segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A boa morte





Volta-se demasiado cansado depois de se ver quem vai morrer


Encontrei esta crónica de Gonçalo M. Tavares na Visão de 25 de Outubro e achei bastante interessante. Tocou-me profundamente e pensei em deixá-la aqui para quem cá vier dar uma espreitadela.

1 - O INCONSCIENTE

O medo da morte e o medo dos mortos. Os relatos sobre esse tremor diante do cadáver; esse não querer tocar.
Talvez uma herança inconsciente da peste negra. Aí, o morto matava: tocar na morte era correr um risco. O morto como foco de contaminação; a morte como algo contagioso. O morto mata; o morto - o que não tem arma, o que não se mexe - estranhamente torna-se algo perigoso. Hoje ainda, no século XXI, a lógica, a medicina e a racionalidade podem dizer-nos que não, que é absurdo, mas o inconsciente ali está: não toques no morto que morres, afasta-te! A Europa, hoje, parece ter no inconsciente a peste negra enquanto tenta pensar com a racionalidade do século XXI.

2 - O PROJETO E O LIVRO

Desde 2009 que o Serviço de Saúde da Fundação Calouste Gulbenkian criou um projecto de cuidados paliativos domiciliários numa povoação em Trás-os-Montes.
O belo livro - Agora e na hora da nossa morte (Tinta da China), de Susana Moreira Marques, com fotografia de André Cepeda - é um relato de um conjunto de viagens feitas pela autora a Trás-os-Montes para ouvir falar quem vai morrer. E para ouvir quem está ao lado de quem vai morrer. E para ouvir quem ficou ainda a falar, ao lado de quem já morreu.

3 - A VIAGEM

A autora percorria muitos quilómetros para ouvir, para estar próxima destes seres que entram num qualquer outro patamar: «Estrada, estrada, estrada, estrada...», eis o que murmura quem vai de Lisboa a Trás-os-Montes. Mas a verdade é que é sempre longo o caminho até alguém que está a morrer. Mesmo que fisicamente a distância não passe de alguns metros, aproximarmo-nos de quem está a morrer é percorrer um enorme itinerário. É fazer, de facto, uma viagem antiga - aquela viagem de iniciação essencial: quem a fazia nunca regressava igual.
Volta-se demasiado cansado depois de se ver quem vai morrer. Porque entre quem ainda não está nesse estado e quem está a morrer há uma distância enorme, uma distância psicológica que exige tanto ou mais esforço para ser percorrida do que a outra, a distância medida por quilómetros. Se vais ver quem vai morrer, prepara-te fisicamente. É muito longe, é muito duro.

4 - BOA MORTE - 

«Boa morte: 1. Morte tranquila, com o mínimo de dor. 2. Morte em que até ao último momento de vida se conserva a dignidade e a identidade. 3. Morte em que o moribundo tem os familiares junto dele.»

5 - O NOME

A sabedoria de algumas culturas que chamam aos seus filhos: Boa-Morte. Cruzarmo-nos com alguém com cinquenta anos que tem o nome de Boa Morte talvez não choque. Mas alguém com cinquenta anos antes foi uma criança e um recém-nascido. Pegarmos num bebé que se chama Boa-Morte - como tal fará confusão e se tornará conflituoso com a nossa cultura. Mas trata-se de um nome humano, muito humano, que olha de frente para aquilo diante do qual quase todos baixam os olhos, obrigando-se a uma cegueira voluntária. Eis, pois, uma sabedoria forte e tranquila ao mesmo tempo - o bebé Boa-Morte. Desejar a alguém uma boa morte é desejar-lhe uma boa vida. (Que tenhas uma boa morte, Que tenhas uma boa morte!).

6 - A SABEDORIA

Susana Moreira Marques visita um doente de longa data: «Lê-se por cima da porta por onde não sairá pelo seu pé:

Meu Deus
Dai-me a serenidade
para aceitar as coisas
que não posso mudar,

A coragem para mudar
aquilo que sou capaz,
E a sabedoria para ver
a diferença.»



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